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27 Mar 2024

| diretor: Porfírio Silva

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Opinião

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José Manuel Rebelo

DATA

11.01.2017

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QUANDO SE DESCOBRE QUE MÁRIO SOARES FAZ PARTE DA NOSSA PRÓPRIA VIDA

Desde sempre ouvi a minha mãe falar-me do Mário Soares. É que, nos anos trinta, o meu avô, Jaime Rebelo, o ”homem da boca serrada” como lhe chamou Jaime Cortezão, fora deportado para os Açores juntamente com o capitão Barroso. A minha família era muito pobre. Por isso, a minha mãe foi viver para a casa da família Barroso, ali no sítio da Boa-Morte, em Setúbal. Durante bastante tempo, a Maria de Jesus e a minha mãe partilharam o quarto.

 

E os anos passaram. Mas os nomes de Maria de Jesus e de Mário Soares nunca deixaram de ser evocados em minha casa em particular pelo meu avô, quando recordava o seu passado de anarco-sindicalista.

Encontrei-me pela primeira vez com Mário Soares em Paris, para onde me exilara em 1969, logo após o simulacro de eleições legislativas. Tanto em casa dele, na rue de Garibaldi, como na minha, em Fresnes, trocámos opiniões sobre o futuro político de Portugal. Otimista, ele previa a queda, a curto prazo, do regime caetanista. Lembro-me de alegria com que me anunciou a adesão ao PS de Mário Sottomayor Cardia. Era mais uma prova, garantia, de que alguma coisa de importante estava a acontecer.

Entrei no Le Monde, em 1972 e, em dezembro de 1974, vim pela primeira vez a Portugal para cobrir o congresso do PS que se realizou na Aula Magna da Universidade de Lisboa. Depois, participei ativamente na cobertura jornalística do chamado PREC.

Foram muitas as divergências que então se manifestaram entre mim, enquanto correspondente em Portugal do Le Monde, e Mário Soares. Discordámos profundamente sobre a interpretação do “caso República”. Sobre o papel do PCP na confrontação política que aqueceu o verão de 1975. Discordámos, e de que maneira, sobre a estratégia que o PS, na altura, levou a cabo. Lembro-me de ter escrito no Le Monde que o PS funcionava como o chapéu de chuva “des forces les plus réticentes à l’égard du processus révolutionnaire”. Quando o General Eanes foi reeleito presidente da República escrevi, sem hesitações, que o futuro político de Mário Soares estava acabado…

Por vezes, Mário Soares reagia a artigos meus com fúria incontida. Por vezes, falava comigo como se uma amizade forte nos ligasse. Num verão, em que nos encontrámos numa receção de Embaixada, perguntou-me se eu estava sozinho em Lisboa. Respondi-lhe que sim. E ele disse-me: “então venha daí comigo, até ao Alvor, onde há uma reunião da Internacional Socialista”. E lá fomos os dois. A viagem durou longas horas. Atravessámos o Sado, para Tróia, falando de tudo e mais alguma coisa. Parámos no início da madrugada em Portimão para comer camarões. E chegámos, finalmente, ao hotel do Alvor. Os dois. Lado a lado. Para grande espanto daqueles que conheciam as nossas desavenças.

Mais anos se passaram. Abandonei o Le Monde em 1991 e enveredei pela carreira universitária. Quando editei a minha tese de Doutoramento, enviei-lhe um exemplar. E ele respondeu-me com um texto que conservo orgulhosamente. Cruzámo-nos nalguns colóquios como se nunca tivesse havido qualquer nuvem a ensombrar as nossas relações. Passou a tratar-me por Sr. Professor.

Da primeira vez que o encontrei, depois de ter saído do Le Monde, disse-lhe que o meu último artigo tinha sido sobre ele.

“Sobre mim?”, indagou, num misto de curiosidade e de preocupação.

“Sim, sobre si”, respondi. “E sem direito de resposta”, acrescentei. Tratava-se da sua cronologia.

Para ironia do destino, o longo texto necrológico que redigi há vinte e cinco anos, foi publicado na edição do Le Monde da passada segunda-feira, dia 9 de janeiro. Integralmente. Apenas com meia dúzia de linhas de atualização. Como se a vida política e cívica de Mário Soares tivesse acabado em 1991. Nem uma linha sobre a luta que travou, nas duas últimas décadas, contra a globalização desenfreada. Nem uma linha sobre a luta que travou contra a perversão neoliberal que ameaça seriamente a Europa que ele tanto ansiou construir. A Europa como um lugar de encontro de povos, de culturas, de projectos, de práticas solidárias.

Um exemplo de mau jornalismo. Imerecido para quem me revelou, numa viagem de avião entre Paris e Lisboa, que, se não tivesse enveredado pela política, gostaria de ter sido jornalista.

 

AUTOR

José Manuel Rebelo

DATA

11.01.2017

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EDIÇÃO Nº1418
Janeiro 2024